A Urgência de Ouvirmos Nossas Crianças e Adolescentes

A pandemia vem desafiando a humanidade há cerca de um ano. Muitos países têm adotado medidas sanitárias restritivas na tentativa de diminuir os efeitos da COVID-19 em suas populações. Ocorre que há segmentos em seus interiores historicamente mais vulneráveis, principalmente em ambientes onde a garantia de direitos humanos fundamentais impressos nas Constituições não se efetiva a contento, como o Brasil. No texto de hoje, quero refletir com vocês, associados/as da AFABE e leitores/as em geral, problemas sociais já crônicos envolvendo as infâncias e as adolescências brasileiras que a doença agravou, assim como políticas públicas que estão sendo implementadas para seu socorro.

Comecemos pensando sobre o escalonamento dos perigos que as autoridades sanitárias, desde a Organização Mundial de Saúde (OMS) até as Secretarias Municipais de Saúde, tiveram de estabelecer a partir de dezembro de 2019 para o enfrentamento da enfermidade. Em um primeiro momento, crianças e adolescentes foram classificados “fora do grupo de risco”, o que não significava, como percebemos melhor a partir de março de 2020 no Brasil, estarem imunes à doença e às suas complicações mais agudas, incluídas suas decorrências para a saúde mental. Por necessária precaução, na maioria das cidades e estados, repentinamente escolas públicas e privadas foram fechadas e as aulas suspensas por tempo indeterminado. As crianças e os/as adolescentes criados/as em famílias protetivas e com recursos materiais e afetivos suficientes para tal resguardo sentiram menos as consequências do distanciamento ou isolamento social impostos. Mas, e os/as demais? Aqueles e aquelas que infelizmente não compõem uma família e comunidade funcionais e se tornam vítimas de inúmeras violações de direitos praticadas pelos próprios parentes, pela própria mãe ou pelo próprio pai? Aqueles e aquelas abandonados/as e negligenciados/as pela sociedade e pelo Estado? Aqueles e aquelas sem computadores, tabletes, celulares e acesso à internet para prosseguirem estudando?

Preocupado com eles e elas, o Grupos de Estudos da Transdisciplinaridade, Infância e Juventude (GETIJ), vinculado ao Programa Associado de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), coordenou a pesquisa intitulada Como Você Está?, alcançando mais de 1.600 crianças e adolescentes de diversos rincões do Brasil através de um questionário com 37 perguntas, aplicado entre junho e setembro de 2020. A pesquisa resultou em dois E-books, um voltado para adolescentes e outro para familiares e profissionais da educação que trabalham com pessoas nesta fase de desenvolvimento. O primeiro E-book foi lançado durante Seminário virtual realizado em 26/02/2021 e está disponível gratuitamente para leitura (https://bit.ly/3msd54T); o segundo será publicado em breve. Dentre tantos registros importantes colhidos das respostas, pedidos de ajuda comoventes e urgentes revelaram um nível de sofrimento muitas vezes angustiante, diretamente relacionado ao confinamento derivado da pandemia. Por esse motivo, o GETIJ foi além da socialização dos resultados da pesquisa e rapidamente se articulou a outras instituições acadêmicas, organismos multilaterais e entidades da sociedade civil, cooperando com a inauguração e expansão de serviços remotos para escuta e acolhimento qualificados deste público.

Assim surgiram as parcerias, por exemplo, com o recém-criado Instituto Menino Miguel, o Núcleo do Cuidado Humano, o Centro de Valorização da Vida e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF Brasil), fortalecendo iniciativas como o Pode Falar (https://www.podefalar.org.br/), um canal de ajuda virtual em saúde mental e bem-estar para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos, lançado em fevereiro do corrente ano. À semelhança do GETIJ, o UNICEF constatou através de enquete realizada em setembro de 2020, com adolescentes principalmente entre 15 e 19 anos, que 72% dos respondentes sentiam necessidade de pedir ajuda quanto ao bem-estar físico e mental durante a quarentena. Embora parcela significativa dos/as adolescentes continue com dificuldades para acessar a internet de forma veloz, contínua e segura, sem dúvida ações como o Pode Falar representam um avanço importantíssimo na promoção e defesa de direitos, materializando, deste jeito, a Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro a partir do Art. 227 da Constituição Federal de 1988 e, de maneira mais intensa, após a vigência das Leis Federais nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e nº 13.431/2017 (Lei que estabelece o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, também conhecida como Lei da Escuta Protegida).

Integrada ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente enquanto entidade comprometida com o controle de políticas públicas para o segmento infantojuvenil bezerrense e com assento no Conselho Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDICA) de Bezerros, a AFABE naturalmente apoia e repercute as referidas ações protetivas, ao mesmo tempo em que recomenda às demais instituições governamentais e não governamentais municipais a assunção de suas corresponsabilidades no cumprimento das mencionadas legislações. Fundamentado em evidências e pesquisas científicas, nosso grupo entende mais que nunca que as infâncias e as adolescências brasileiras, especialmente as desprovidas de políticas públicas essenciais, sempre estiveram no grupo de maior risco para todo tipo de mal, proveniente ou não de doenças infectocontagiosas. Para elas, o princípio estatutário da prioridade absoluta ainda está longe de ser aplicado satisfatoriamente. Talvez a pandemia da COVID-19 tenha escancarado o elemento da indiferença adulta às necessidades específicas de nossas crianças, adolescentes e jovens. Como diria o Prof. Humberto Miranda da Silva, coordenador do Laboratório de História das Infância do Nordeste (LAHIN) e da Escola de Conselhos de Pernambuco, a mentalidade menorista e as práticas adultocêntricas herdadas desde o período Colonial perduram em nossa cultura e sociedade ocidentalizadas. Nós, que já fomos crianças e adolescentes, precisamos definitivamente superar esta mazela cognitiva e aprender a acolhê-los/as, ouvi-los/as, compreendê-los/as e respeitá-los/as como são e merecem.

Por Pedro Rodrigo da Silva, Pedagogo e Associado AFABE.

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