Simplesmente AMAR

Quero compartilhar com vocês, leitores/as, sentimentos de alguém que, por senso de humanidade e dever profissional, ama as crianças e os/as adolescentes e pretende cooperar para a plena efetivação de todos os seus direitos previstos especialmente no Art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil e no Art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei Federal nº 8.069/1999): “Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (incluído pela Lei nº 13.257, de 2016) (grifo meu)”.

Sou pai e amo minhas filhas. Recentemente conversei com um pai igualmente amoroso e zeloso com o desenvolvimento biopsicossocial de seus filhos, preocupado em particular com a aceitação social em relação à possível condição sexual de seu filho adolescente. Vítima de tantos preconceitos quando criança e adolescente, em razão de seus gestos e falas considerados “afeminados” por adultos moldados em uma cultura homofóbica, esse pai percebeu cedo que as pessoas são diferentes, têm preferências, pensamentos, comportamentos, sonhos etc. diferentes e merecem ter suas particularidades incondicionalmente respeitadas. Contudo, embora não visse nenhum problema na possibilidade de o filho descobrir-se homossexual, nas conversas comigo o pai demonstrava continuar apreensivo pela resposta da sociedade majoritariamente preconceituosa e segregadora que seu filho tende a receber na medida em que confirme (ou não) a condição existencial que se desenha para si. Compreensível: ele não quer que o filho sofra tudo o que ele sofreu antes de constituir a família heteronormativa que a maioria de nossos contemporâneos chancela e na qual ele é situado enquanto “um cidadão de bem”.

Por que compartilho essa temática com vocês, associados/as e simpatizantes da AFABE? Entre outras razões, por causa de sua urgência; porque me compadeço com o sofrimento humano, sobretudo com o de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (Art. 6º do ECA), que muitas vezes não dispõem de recursos psicológicos suficientes para se defenderem e desenvolverem a necessária resiliência contra as barbáries que as assolam; porque acredito que a educação vai além da preparação para vestibulares e a perpetuação de um jeito de ser gente e mundo que já deu todas as mostras de sua caduquice; porque, apesar dos 30 anos do ECA e dos 25 anos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei Federal nº 9.394/1996), “Ainda há muito para ser conquistado em termos de respeito à dignidade da pessoa humana, sem distinção de raça, nacionalidade, etnia, gênero, classe social, região, cultura, religião, orientação sexual, identidade de gênero, geração e deficiência”, conforme está posto na Introdução do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (conferir em https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/educacao-em-direitos-humanos/DIAGRMAOPNEDH.pdf).

A despeito das nefastas Fake News (em bom português brasileiro, “notícias falsas”) que se proliferam nas redes sociais virtuais em nosso país nos últimos anos e da ideia infundada e oportunista de que a educação sexual é desnecessária e pode corromper a inocência da população infantojuvenil, é preciso entender o papel determinante das instituições, notadamente das escolas e das escolas públicas, na formação das novas gerações brasileiras no que diz respeito a assuntos ainda encobertos e até vetados por mitos e tabus que as ciências vêm descontruindo. Se as crianças e os adolescentes receberem informações pertinentes nas salas de aula sobre os aspectos fisiológicos da sexualidade humana, a fim de conhecerem e cuidarem de seus próprios corpos; se forem educados/as para reconhecer e evitar a prática do bullying sexual, que, no extremo, tem levado sua vítimas ao suicídio; se forem ensinados/as a identificar e denunciar seus/suas abusadores/as sexuais (sabidamente a maior parte desses/as abusadores/as estão em casa, ou seja, são os próprios familiares. Conferir em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-05/mais-de-70-da-violencia-sexual-contra-criancas-ocorre-dentro-de), teremos infâncias e adolescências mais saudáveis em todas as dimensões de suas vidas.

Somos um dos países mais odiosos e letais contra a diversidade sexual e de gênero no mundo (conferir em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2018/05/16/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-homossexuais-no-mundo). Somos a nação que assassinou a pauladas, socos e chutes, no Ceará, no último janeiro, um adolescente de 13 anos tido por homossexual pelo seu algoz de 17 anos. Sim, esse praticou o ato infracional análogo a crime legitimado por um ambiente que induz a constranger, a oprimir e a assassinar pessoas LGBTQI+. Por que tanta violência entre nós? Por que essa violência gratuita contra as pessoas LGBTQI+ no Brasil e no mundo? A resposta também passa pela nossa cultura de matriz patriarcal e misógina, que faz leituras seletivas, distorcidas e anacrônicas de textos sacros pretensamente universais e atemporais; que nega as mulheres, o feminino e a possibilidade, por exemplo, de um indivíduo do sexo masculino abdicar de seu “direito” à reprodução dos traços culturais violentos que caracterizam a masculinidade tóxica, embutidos em expressões como: “meninos não choram”, “meninos precisam brigar”, “futebol e roupa azul: coisas de meninos”, “’bicha’, ‘mariquinha’, ‘fresco’, ‘mulherzinha’”, “como não vai querer sexo, se você é homem!”, “o homem responsável é o ‘homem molenga’” etc. (conferir em https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/22/estilo/1548175107_753307.html).

Temos muito a avançar, mas também a retroceder. Sim, é preciso voltar àquilo que de melhor herdamos das tradições que nos constituem enquanto povo(s). Embora acolha e respeite quem não se orienta pelas normativas e ensinamentos judaico-cristãs, os quais compõem a base de nossa cultura religiosa ocidental e dos quais decorrem muitos anacronismos, volto a Jesus de Nazaré, o homem que confundiu os pseudorreligiosos de seu tempo e que deixou um legado de sabedoria para além do círculo de seus/suas seguidores/as, até hoje digno de conhecimento e reconhecimento. Jesus acolheu a todos/as amorosamente, sem distinções. Ele não admitia sofrimentos desnecessários. Era profundamente humano, por isso foi tão divino. Não tenho dúvida de que ele jamais pactuaria com quem violenta as pessoas LGBTQI+, inclusive a pretexto de defender seu nome. Onde há amor genuinamente cristão, onde há empatia, não cabe ódio nem violência de qualquer tipo contra o ser humano, seja ele/ela homossexual, lésbica, bissexual, transexual, travesti etc.

Volto àquele pai e àquele filho, assim como à sua família ampliada. Amo-os muito. Quero lhes repetir que, mesmo admitindo a existência de muitos motivos para se preocuparem com esse mundo hostil e talvez inabitável para vocês e seus desejos, existe gente como eu e tantos/as outros/as profissionais, educadores/as e defensores/as dos direitos humanos para recebê-los nas ilhas de acolhimento e cuidado que não desistiremos de oferecer e tentar juntar, em vista de novos arquipélagos, quiçá continentes de humanidade em futuro o mais próximo possível. Só o amor e o cuidado mútuos nos distinguem das outras espécies de seres vivos. O amor encarnado é o que nos distinguirá daqueles/as que, embora tenham nascido potencialmente humanos, não conseguiram alcançar a própria humanidade. O amor é o que vale, do jeito que descobrirmos ou escolhermos manifestar esse amor, nossas singularidades e essencialidades.

Por Pedro Rodrigo da Silva, Pedagogo e Associado AFABE. #AVozdaAFABE #LGBTQI+ #Amor #DireitosHumanos #ECA